Por Paulo Scurato
Não me chames estrangeiro
“Não me chames estrangeiro:
Não me chames estrangeiro, só porque nasci muito longe
ou porque tem outro nome essa terra donde venho.
Não me chames estrangeiro porque foi diferente o seio
ou porque ouvi na infância outros contos noutras línguas.
Não me chames estrangeiro se no amor de uma mãe
tivemos a mesma luz nesse canto e nesse beijo
com que nos sonham iguais nossas mães contra o seu peito.
Não me chames estrangeiro, nem perguntes donde venho;
é melhor saber onde vamos e onde nos leva o tempo.
Não me chames estrangeiro, porque o teu pão e o teu fogo
me acalmam a fome e o frio e me convida o teu tecto.
Não me chames estrangeiro; teu trigo é como o meu trigo,
tua mão é como a minha, o teu fogo como o meu fogo,
e a fome nunca avisa: vive a mudar de dono.
E chamas-me tu estrangeiro porque um caminho me trouxe,
porque nasci noutra terra, porque conheço outros mares,
e parti, um dia, de outro porto...
mas são sempre, sempre iguais os lenços da despedida
iguais as pupilas sem brilho dos que deixámos lá longe,
os amigos que nos chamam, e também iguais os beijos
e o amor dessa que sonha com o dia do regresso.
Não me chames estrangeiro; trazemos o mesmo grito,
o mesmo cansaço velho
que sempre arrastou o homem
desde fundos tempos,
quando não havia fronteiras,
e antes de virem esses, que dividem e que matam,
os que roubam, os que mentem,
os que vendem nossos sonhos
os que inventaram um dia esta palavra: estrangeiro.
Não me chames estrangeiro, que é uma palavra triste,
que é uma palavra gelada, e que cheira a esquecimento
e cheira também a desterro.
Não me chames estrangeiro: olha o teu filho e o meu
como correm de mãos dadas, até ao fim do caminho.
Não me chames estrangeiro: eles não sabem línguas,
de limites nem bandeiras; olha como sobem ao céu
no riso que é uma pomba que os reúne no voo.
Não me chames estrangeiro; vê teu irmão e o meu,
o corpo cheio de balas, beijando o solo de morte;
eles não eram estrangeiros, conheciam-se desde sempre,
pela eterna liberdade, e livres os dois morreram.
Não me chames estrangeiro; olha-me nos olhos
muito para lá do ódio, do egoísmo e do medo,
e verás que sou um homem, não posso ser estrangeiro.”[1]
Com este poema, a autora Ana Rita Britto, inicia seu trabalho da matéria Fontes de Informação Sociológica pela Universidade de Coimbra, abordando o tema da imigração da África para Portugal. Imigração feita, na maioria dos casos, de maneira ilegal, em embarcações precárias, colocando milhares de pessoas todos os anos ao relento do Mediterrâneo. Imigrantes que são criminalizados apenas por serem imigrantes: o OUTRO que chega para tomar vagas no mercado de trabalho que deveriam ser para europeus, o outro que rouba; o outro que transmite doenças.[2]
Com esta breve introdução, pretendo colocar em foco outra análise pertinente aos estudos do Mediterrâneo e sua “vocação” enquanto ponte de imigração. Tomando por base a reportagem do site OperaMundi[3], de julho do presente ano, pode-se compreender a dimensão politica que os fluxos imigratórios via mar vem ganhando nos últimos anos, especialmente se contextualizarmos a realidade europeia no plano de crises econômicas e sociais que vem enfrentando na atualidade.
O exemplo dado como central na reportagem é a denúncia feita pelo comissário para os Direitos Humanos do COE – Conselho da Europa, organização desvinculada da U.E -Thomas Hammarberg. Em seu posicionamento enfático, afirma a culpabilidade inerente aos países, e seus respectivos líderes europeus quanto às centenas de morte de imigrantes em auto mar. No caso presente, refere-se às mais de 150 mortes resultantes do naufrágio de uma embarcação, vinda da Líbia, que tentava atravessar o Mediterrâneo ilegalmente.
Mais do que isto, Hammaberg comenta sobre a existência de um acordo, que vigorou desde 2008 até o começo de 2011, no qual o premier italiano Silvio Berlusconi e o ditador Muamar Kadafi firmavam a competência do governo do último em garantir o impedimento de que embarcações provenientes do norte da África atravessassem o mediterrâneo transportando imigrantes ilegais. Segundo o comissário, as autoridades libanesas, através da guarda costeira, interceptava as embarcações, levando às pessoas que nelas se encontravam à capital Trípoli. Ali, os “imigrantes” eram triados e mandados posteriormente aos seus países de origem.
Em uma análise mais crítica, fica claro que este impedimento por meio de um acordo bilateral não será, se já não é, uma medida estritamente inócua em termos de longo prazo, já que o processo imigratório possui suas raízes em problemas estruturais destas nações, e não nos caráteres pessoais dos que emigram. Nas palavras do próprio Hammaberg :“Os governos europeus têm tentado desestimular as chegadas por meio de operações de rejeição e de fortes medidas de dissuasão [...] Issonão parou de imigrantes que tentam chegar à Europa, mas fez com que esta viagem se tornasse mais perigosa".
Há outro fator apontado pelo comissário: deve haver por parte dos governos europeus e africanos uma forte fiscalização/vigilância no sentido de se poder socorrer a tempo embarcações que estão em situação de perigo e vulnerabilidade. Trata-se, pois, de um policiamento não punitivo, mas humanitário. Entretanto, pensar em medidas destes tipos parece ser bastante utópico quando nos deparamos com populações e governos que sustentam e legitimam a xenofobia, a perseguição eo preconceito – velado ou não- ao estrangeiro.
Bibiografia:
COMISSÁRIO responsabiliza U.E por morte de imigrantes no mar. Disponível em:
http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticia/COMISSARIO+RESPONSABILIZA+UE+POR+MORTE+DE+IMIGRANTES+NO+MAR_12559.shtml. Acesso em 12/10/2011.
IMIGRAÇÃO do norte da África para Portugal. Disponível em:
http://www4.fe.uc.pt/fontes/trabalhos/2006016.pdf. Acesso em 12/10/2011
[1] Disponível em: http://www4.fe.uc.pt/fontes/trabalhos/2006016.pdf. Acesso em 12/10/2011.
[2]BRITTO, Ana Maria. Imigração do Norte da África para Portugal. Coimbra, 2006.
[3] Disponível em: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticia/COMISSARIO+RESPONSABILIZA+UE+POR+MORTE+DE+IMIGRANTES+NO+MAR_12559.shtml. Acesso em 12/10/2011
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